PRIMAL

Primal, do diretor Genndy Tartakovsky, é uma série do Adult Swim e HBO que acompanha a história anacrônica de um humano e uma dinossauro fêmea tentando sobreviver juntos a uma natureza hostil após a perda de suas famílias.

              Enquanto objeto de estudo do Digimitos, essa animação foi a base para dissertar sobre o mito de Prometeu enquanto arquétipo civilizador do homem em desenvolvimento em uma realidade tomada pela brutalidade das civilizações e daquilo que as antecedeu historicamente. Também Pandora está presente, essencialmente feminina, caracterizada pelo aspecto selvagem e inovador de uma natureza primitiva e voraz. 

           A animação se destaca principalmente por contar histórias profundas sem o uso de falas em um primeiro momento, já que está ambientada em uma época que precede o surgimento de formas mais complexas de linguagem. 

           É nesse contexto que vemos Spear, um homem humano, encarnando o mito de Prometeu na medida em que se reinventa todos os dias para construir novas ferramentas, caçar e conservar suas relações em sua luta pela sobrevivência, agindo com esperteza e criatividade. Por outro lado, também somos apresentados a sua companheira Fang, uma dinossauro que, tal qual Pandora, representa a presença de uma figura feminina e de todas as implicações desse novo arquétipo na vida do protagonista.

 

             A história acompanha, então, o desenvolvimento da relação de companheirismo entre os dois e os conflitos que suas diferentes naturezas trazem à tona, especialmente a relação dicotômica entre o impulso “civilizador” do homem e a essência instintiva da fêmea indomável. Não se trata de qual deles sairá vencedor, mas de como essas duas energias opostas e complementares irão provar serem capazes de conciliar suas diferenças e amadurecer com elas, tornando-se duas forças interdependentes e inseparáveis, anima e animus, yin e yang.

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Spear e Fang: competição e empatia

         Durante o enfrentamento dos conflitos que surgem, os personagens são obrigados a amadurecer não somente diante das dificuldades do ambiente, mas também das diferenças dentro de sua própria relação. Fang e Spear se opõem e complementam de diversas formas. Ela é uma força selvagem, feminina e indomável, uma representação da maternidade e da emoção que se vale de seu poder, de sua resistência e de sua teimosia para conseguir o que quer. Na verdade, essa é justamente uma das problemáticas da série: tratá-la como algo com que o homem precisa aprender a lidar e que necessita domesticar para que então se estabeleça uma harmonia.

           Sucede uma série de confusões até o momento em que ambos se entendem como aliados de igual valor, em que suas diferenças são o que os torna seres equivalentes e não seres em relação de exclusão. Spear parece ter sido pensado para ser um agente da dominação de todo o mundo ao seu redor. Através de sua inteligência para se valer do ambiente, criar alianças e desenvolver ferramentas, ele é apresentado como um civilizador e, portanto, portador daquilo que é um fator extraordinário dos seres humanos: a criatividade para lidar com conflitos, um paralelo ao fogo motor do Prometeu mitológico, movido pela vontade de progresso, outro mito civilizador.

             A animação trabalha o desenvolvimento da relação entre Spear e Fang como algo que, a princípio, é entendido, sob a ótica do ser humano, que tem a natureza como algo que o homem precisa dominar e proteger, deixando de reconhecer a força e a natureza de uma personagem que é muito mais dona de sua própria história do que apenas uma mascote rebelde. Aos poucos ao longo da narrativa, as nuances começam a aparecer e camadas vão sendo dissecadas. A afetividade estabelecida entre eles passa a suavizar seus embates sobre dominação e costumes, criando um cenário em que ambos realmente se importam e cuidam um do outro. À sua própria maneira, cada um deles passa a entender os limites e vantagens de suas capacidades, tanto físicas quanto mentais, aprendendo a trabalhar em sintonia e partir em defesa um do outro ao construir uma nova família. Parece que aqui o conceito de empatia se adequa  para se compreender como o sujeito consciente se concebe a partir do contato com a alteridade. Esta última não é apenas desafio e contrariedade, ela também é promessa de harmonia e equilíbrio.

Primal: uma série violenta

          Ser um indivíduo civilizado, no sentido literal da palavra, consiste em fazer parte de um pequeno universo sociocultural integrado, em que as interações e atividades promovem algum nível de desenvolvimento. Mas o problema da humanidade, por vezes, é deixar essa condição de lado em função de desígnios mais ousados: aquele mesmo fogo que a compelia a ser melhor e encontrar crescimento em um propósito coletivo, constantemente torna-se o princípio de desejos megalomaníacos e egoístas por todo tipo de poder. Segundo Harari (2015, p. 24) “raramente nos satisfazemos com o que já temos. A reação mais comum da mente humana a uma conquista não é a satisfação, mas o anseio por mais. Os seres humanos estão sempre em busca de algo melhor, maior, mais palatável.”

         Exemplo disso é no quinto episódio da série, em que, dentro do contexto de uma civilização tribal composta por outra espécie de primatas, cuja organização social gira em torno de um sistema de confrontos em uma arena de combate enquanto outros assistem e vibram. Ambos capturados, Spear e Fang precisam lutar para sobreviver como gladiadores sem sequer entender pelo que exatamente aqueles homens-macaco estão se confrontando.

            Aqui é apresentada uma violência animalesca e que remete à forma mais bestial do ser pensante, uma vez que, apesar de animais, são todos representados de forma antropomorfizada, chegando até mesmo a consumir substâncias para alterar sua forma física e desempenho, em uma clara referência ao consumo de drogas e outras substâncias atualmente consideradas ilícitas, mas tradicionalmente utilizadas em todas as sociedades humanas. Existe também a implicação de uma estrutura de crenças específicas na duração do conflito, a qual fica mais aparente com a aparição de um indivíduo primata que parece ser uma figura de autoridade semelhante a um sacerdote com forte poder político na comunidade, usando um manto e apoiado em um cajado. Ele parece ordenar o embate e decide quais entre os competidores ganham o direito de consumir um estranho líquido preto que potencializa sua forma física, mas ao mesmo tempo parece levar quem o bebe a um estado de ódio incontrolável.

          Os primatas, na animação, também se revelam antagônicos aos dinossauros: dispostos pela arena, há uma série de crânios daqueles que foram derrotados. O porquê não é muito explorado, mas o ápice se dá no momento em que Spear, sob efeito do tal líquido preto, enfrenta um primata que recebe a ordem do sacerdote de escolher um dos crânios como elmo para matar Fang. No fim, os protagonistas conseguem vencer e escapar, mas não sem sofrer os danos da violência em seu aspecto mais humano e animal ao mesmo tempo.

Uma jornada de transformação

          Todo o arco narrativo da série é construído em uma corrida contra o tempo em que o instinto e a capacidade analítica se revelam as chaves para os protagonistas continuarem vivos. Eles antecipam: sabem que quanto mais rápido se curarem, mais cedo poderão retomar suas vidas em um lugar mais seguro. Mais do que sobrevivência, a inovação e a criatividade são forças motoras da capacidade de abstração e organização humana, configurando ferramentas inerentes a sua existência e essência mais básicas.

           Spear, na série, é essencialmente humano e segue uma jornada do herói que o obriga a desfazer seu “eu” anterior para ser forjado em algo maior e melhor, como fica nítido ao final da primeira temporada em que ele se revela muito mais determinado e resiliente com relação ao ambiente ao seu redor e aos indivíduos que o compõem do que no primeiro episódio da série. Ele entende a utilidade e o peso da violência na mesma proporção quando precisa ser resiliente, frequentemente excedendo seus limites diante de ameaças que põem em risco o bem-estar de quem ama.

          Suas relações são constantemente exploradas na medida em que esse fator humano o impulsiona, mas também acaba por ser uma característica limitante. Exemplo disso é sua relação com Fang: as diferenças entre ambos o tiram do sério, mas sem os conflitos daí gerados, ele não seria obrigado a amadurecer e encontrar uma versão melhor de si mesmo ao longo da história. É graças a esse confronto e ao enfrentamento da alteridade que, ao final da primeira temporada, ele se mostra tão aberto a interagir com a nova personagem que aparece. Mira é apresentada como uma mulher escravizada de uma civilização além-mar, introduzindo aos protagonistas e ao público esquemas como a linguagem verbal, organização social e religião pela primeira vez; tudo isso ocorre sob a ótica de Spear, que nunca havia sequer concebido tais conceitos. Essa possibilidade de mudança diante do inesperado é o que move não somente o protagonista, mas todo seu mundo e, por conseguinte, a narrativa.