Do mito à série, da série ao mito
No princípio, era a história oral, a poesia. A passos largos, vieram a imprensa e o livro, o jornal, o folhetim e toda a literatura. Com a industrialização e o desenvolvimento técnico, fotografia, cinema, histórias radiofônicas e televisão, com seus seriados e suas novelas, tomaram conta da narrativa. Ela se tornou audiovisual. E veio a tecnologia digital no século XXI. Por meio da TV e do streaming, as séries ocupam a frente da cena narrativa.
The Midnight Gospel ( Netflix ,2020)
No entanto, mesmo atravessando as mídias, a narrativa permanece como um fogo sempre aceso. O mito continua ali, por vezes escondido e latente, mas sempre atuante no imaginário coletivo. Uma antiga história, narrada por Yosef Agnon, ilustra a permanência do mito na narrativa:
Quando Baal Schem, fundador do hassidismo, tinha uma tarefa difícil pela frente, ia a certo lugar no bosque, acendia um fogo, fazia uma prece, e o que ele queria se realizava. Quando, uma geração depois, o Maguid de Mesritsch viu-se diante do mesmo problema, foi ao mesmo lugar do bosque e disse: “Já não sabemos acende o fogo, mas podemos proferir as preces”, e tudo aconteceu segundo seus desejos, Passada mais uma geração, o Rabi Moshe Leib de Sassov viu-se na mesma situação, foi ao bosque e disse: “Já não sabemos acender o fogo, nem sabemos as preces, mas conhecemos o local no bosque, e isso deve ser suficiente”; e, de fato, foi suficiente. Mas, passada outra geração, o Rabi Israel de Rijn, precisando enfrentar a mesma dificuldade, ficou no seu palácio, sentado em sua poltrona dourada e disse: “Já não sabemos acender o fogo, não somos capazes de declamar as preces, nem conhecemos o local no bosque, mas podemos narrar a história de tudo isso”. E, mais uma vez, isso foi suficiente.
(AGAMBEN, G. O fogo e o relato. São Paulo: Boitempo, 2018. pp. 27-28)
“Narrar a história de tudo isso”: séries são narrativas sequenciais divididas em episódios e temporadas, que apresentam uma unidade argumentativa e temática; mas também, um arco narrativo. Há séries documentais, ficcionais e de todos os gêneros: aventura, drama, comédia, animação infantil…
Aqui, centramos nossas atenções em séries de animação voltadas para um público jovem; isso porque queremos contribuir para que professores de Ensino Médio olhem para essa forma narrativa tão consumida pelos seus estudantes e se interessem em inclui-la entre seus objetos de ensino. Afinal, a cultura contemporânea deixou de ter a literatura como principal forma narrativa que passou a ser audiovisual. Isso não quer dizer que a literatura já não tenha importância, mas que por meio do audiovisual e das séries temos mais chances de alcançar a sensibilidade dos alunos e adentrar temas e reflexões tão importantes quanto os que a literatura permite tratar. Nesse sentido, a cultura contemporânea é PÓSLITERÁRIA.